O médico e o monstro – A reforma trabalhista e o exercício da medicina no Brasil
No dia 13 de julho, foi sancionada pelo Presidente Michel Temer o Projeto de Lei da Câmara 38/2017, a reforma trabalhista, que alterou profundamente a CLT. O projeto, que teve acelerada tramitação tanto na Câmara dos Deputados como no Senado, suscitou caloroso debate entre os parlamentares.
No entanto, não houve o tempo e o espaço necessário – na mídia e no congresso – para se esclarecer os efeitos negativos da reforma. Tampouco se verificou uma preocupação do governo em indagar se a população realmente estava de acordo com as modificações propostas.
Insta salientar que, as profissões liberais – médicos, advogados e professores – podem ser duramente atingidas pelas modificações na lei. Portanto, cumpre averiguar como duas alterações especificas na regulação do trabalho, o contrato intermitente e a terceirização irrestrita, modificam o exercício da medicina no Brasil.
O médico intermitente – contratos atípicos
Uma das alterações mais prejudiciais da reforma trabalhista é a instituição do contrato intermitente, o trabalhador just in time. Uma nova modalidade de contratação em que o profissional, subordinado à empresa contratante, prestará seus serviços de maneira descontínua, alternando entre períodos de atividade e inatividade.
Nesta modalidade de contrato, o médico – que deverá ficar disponível 24 por dia – será solicitado a prestar seus serviços conforme as demandas especificas da empresa, hospital ou clínica em questão – é a uberização da profissão médica.
A remuneração do médico, neste contrato, será proporcional às horas efetivamente trabalhadas. Antes remunerado por plantão ou pela jornada de trabalho, o médico sujeito ao contrato intermitente será remunerado apenas quando for solicitado a atuar.
Para mais, caso o médico aceite a oferta de trabalho, que deverá ser ofertada com até três dias de antecedência, mas se veja impossibilitado – por razões diversas – de comparecer ao serviço, será obrigado a pagar uma multa de 50% do valor estabelecido pelo trabalho em questão. O médico, agora just in time, correrá o risco de pagar para trabalhar!
O contrato intermitente tem o potencial de aumentar instabilidade na vida do médico, diminuir sua remuneração e deteriorar suas condições de trabalho. Surge a figura do médico on demand, desvalorizando a profissão e acentuando o caráter de commodity do serviço médico.
Conforme o estudo “Demografia Médica no Brasil 2015”[i], estima-se que 44,4% dos médicos no Brasil são remunerados por um salário mensal.
Ao estabelecer o pagamento pelas horas trabalhadas, o contrato intermitente tem o potencial de reduzir a proporção de médicos com uma remuneração estável, ao passo que se eleva a porção de médicos com um salário instável, oscilante e incerto.
Se, por um lado, o contrato intermitente ajusta a jornada do médico às necessidades da empresa, trata-se de um desajuste agudo da vida profissional e pessoal do médico. Uma mudança fundamental em sua atividade, que resultará em menor controle de sua vida profissional, maior insegurança no trabalho e rebaixamento salarial.
Ao criar a figura do médico just in time, o contrato intermitente desvaloriza o ofício médico, rebaixa suas condições de remuneração e degrada o exercício da medicina no Brasil.
O médico terceirizado – terceirização irrestrita:
Antes permitida apenas para as atividades “meio” – sem relação direta com a atividade principal da empresa (limpeza, segurança e manutenção), agora, a contratação de terceiros não conhece limites legais.
A permissão para terceirizar as atividades fim irá multiplicar os médicos contratados via pessoa jurídica (PJ) e microempreendedor individual (MEI). Cumpre salientar que a contratação de profissionais pelas modalidades referidas desobriga a empresa de assegurar o FGTS, previdência, décimo terceiro, licença maternidade, férias remuneradas, aviso prévio e auxílio doença/acidentário.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, em 2013, apenas 19,7%[ii] dos médicos assalariados privados estavam empregados pelo regime CLT e, portanto, tinham seus benefícios trabalhistas garantidos em lei. É justo dizer que, com a proliferação descontrolada de contratos atípicos (PJ e MEI), esta proporção tende a diminuir.
A ampliação dos contratos PJ e MEI tende a rebaixar as condições de trabalho do médico. O profissional, ao se ver privado de seus direitos trabalhistas, terá piores condições de trabalho.
*
Sob o pretexto de modernização das leis trabalhistas, os parlamentares brasileiros instituíram modificações que degradam as condições de trabalho no Brasil. Ao rebaixar os custos do trabalho e precarizar a vida do médico, o Governo Federal dá sinais de despreocupação com o exercício da medicina.
No clássico “O médico e o Monstro”, Dr. Henry Jekyll é um destacado médico que, inconformado com a duplicidade de seu caráter, busca eliminar sua faceta malevolente. Em sua saga, o famoso doutor termina por se transformar no Sr. Edward Hyde, a besta que encarna a personalidade obscura e violenta do íntegro Dr. Jekyll.
A reforma trabalhista, ao contrário do que acontece com o personagem, não possui uma faceta benevolente, inclinada ao bem; e uma faceta maligna, inclinada ao mal. As modificações na regulação do trabalho criaram uma monstruosidade jurídica, alheia aos interesses dos profissionais brasileiros.
Anunciada como a portadora da virtuosidade do Dr. Jekyll, a reforma trabalhista, quando analisada mais atentamente, possui as características, a forma e a depravação de Hyde. Esperem pelo pior.
Tomás Rigoletto Pernías é doutorando em Desenvolvimento Econômico pelo Instituo de Economia da Unicamp
[1] SCHEFFER, M. et al., Demografia médica no Brasil, v. 2 / Coordenação de SCHEFFER, M.; Equipe de pesquisa: CASSENOTE, A., BIANCARELLI, A. – São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo: Conselho Federal de Medicina, 2015
[2] Dado coletado em www.perfilsocial.com.br, a partir da PNAD (IBGE).
Fonte: Le Monde/ Diplomatique
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